Dez passos para encontrar uma pessoa

|

Me posiciono no microfone de mentira sustentado no tripé imaginário. Ajeito o tripé. Ouço os pássaros e tento encontrar o momento certo de abrir o mapa-múndi na minha cabeça. Curioso como realmente só consigo fazer isso depois que passo do Largo do Machado. Aqueles segundos de suspensão em que vejo de soslaio Caio e Luar deitados e ouço a música do Phil tocando não me fazem pensar em mais nada, e isso me faz feliz. É raro ter um momento no dia em que eu não penso em mais nada. Utilizo algumas sequências já encadeadas mentalmente, mas sempre surge um lugar novo quando a boca se abre. Me sinto uma criança (com algum tipo de retardo mental). 1. Me lembro dos dias em que abria o Almanaque Abril para decorar nomes de capitais.

Caminho em direção à minha cadeira e escuto, com gosto, ao texto do Caio. Vocês não têm ideia de como é bom pra mim ouvir esse texto. Fico imaginando aquela mulher sentada na plateia e sua reação (boba) de espanto e surpresa, assim, logo de cara. 2. Me lembro de quando ela comprava alguma coisa numa loja e tinha que informar seus dados ao vendedor, para fazer cadastro.

Pela primeira vez desde que sentei, desvio meu olhar do Caio e o direciono à Luar, que dança como se fosse Marlene. Tenho um momento de relaxamento e observação, coisa que não se repetirá mais tarde. São poucos minutos em que eu assumo uma posição quase de espectador de gaveta. Penso agora como são diferentes esses momentos, pra mim e pra vocês. 3. Toda vez que a Luar lê o cartão eu me lembro de quando escrevi aquilo, e de quando o contexto era tão diferente quanto poderia ser daquela história que acabamos criando nas nossas cabeças, e eu, na verdade, era mais Marlene do que autor do cartão.

Começo a escrever a carta ao contrário no retroprojetor, e fico feliz com minha destreza. Gosto quando o Caio acompanha os movimentos e assiste à feitura da mesma. Penduro o quadro e me sento. Vejo o olhar fixo do Pedro no Caio, e a posição de desconforto da Luar. Imediatamente me sinto cansado com o momento que se aproxima. Fico pensando em como a Luar se sente.

Entro no consultório médico ou na universidade pra dar uma palestra ou num porão escuro e cheio de experimentos onde só descabelados podem entrar. É difícil. Minha maior fraqueza, defintivamente. 4. Me lembro de quando meu pai comprou um Monza pra minha avó e a gente foi de carro até Recife entregar o presente pra ela. Minhas primeiras memórias vêm dessa estrada e do cachorro que ela quase atropelou quando chegamos, e é neles que penso nessa hora: em meu pai, em minha avó e no cachorro.

Traço caminhos que ainda estão conjugados ao tal cérebro de que falo; é o momento em que tudo se mistura na minha cabeça e imagino estações de metrô entre os meus neurônios. Ouço Caio e Luar falando e meus ouvidos sorriem. Chego a Berlim e 5. lembro exatamente, todas as vezes, daquele trajeto. A pé, de bicicleta ou de conversível branco. Toda a insegurança anterior dá lugar a um estado de alegria que acabo transmitindo na voz mais aguda. As imagens aparecem muito claramente na minha cabeça nesse momento, e são elas que guiam minha fala. Tenho bastante certeza disso.

Corro com os cortornos pra depois contornar a corrida do Caio. Me divirto um pouco e as minhas lembranças 6. vêm até mim por conveniência -- é a Luar quem as traz.

Me sento da correria das crianças e lamento no cigarro que fumo. 7. Cada vez me lembro menos. Na verdade, já me esqueço de lembrar de qualquer coisa. Sinto que torturo Caio e Luar junto com o Pedro. Acho bonito por ser feio, e me impressiono cada dia mais com esse mo(vi)mento. Volto a sentar, resoluto. 8. Minha cabeça não sente a falta de nada.

Me levanto, procuro alguém, procuro uma falta. Pego pela mão, abraço, esboço timidez, finjo que falta. Já não me lembro de nada, muito menos de ninguém. Chego a julgar, boba e internamente, ser egoísta lamentar ausências tão individuais assim. Se em tudo há, em tudo falta. É isso que importa. Saudade é coisa que eu posso produzir assim: 9. lembrando.

10.

0 comentários:

Postar um comentário

 

©2009 Todo Esse Mato Que Cresceu Ao Meu Redor | Template Blue by TNB